terça-feira, 18 de setembro de 2012

"Minha Opção em Abusar de Drogas" por Embeca Hipara


Minha Opção em Abusar de Drogas por Embeca Hipara (pseudônimo)

Esta é a tradução da introdução do livro 'Minha Opção em Abusar de Drogas' (ou em inglês 'My choice to abuse drugs', escrito por um dissidente de um satélite soviético que se mantém anônimo temendo represálias até hoje, e foi escrito originalmente como panfleto político anti-proibicionista sem fins lucrativos), traduzido pela F.O.A.P. (Forças Organizadas Anti-Proibicionistas), Coletivo Princípio Ativo de Porto Alegre e um jornalista anônimo.

 INTRODUÇÃO

A

Uma vez há algum tempo, eu e um amigo meu estávamos sentados num banco de uma típica praça pública, com jardim - dessas que ficam entre pequenos blocos de apartamentos -, próximo ao centro da cidade de Sofia . Fazia uma hora que a chuva havia parado, e encontramos com sorte um banco que não estava molhado - protegido da chuva pelos galhos de uma castanheira - e ali, dividíamos um baseado. Em meio a isso, notamos uma turma de senhoras, que estavam sentadas, paradas no espaço vazio da outra ponta do jardim.
Ninguém nunca sabe o que esperar de uma turma de senhoras. Nos idos de 1989, muitas delas tinham por aqui o hábito de denunciá-lo à polícia secreta, se por acaso você fizesse piadas sobre o partido comunista, ou se você ouvisse "música capitalista" - e um hábito desses aí não costuma morrer fácil, sendo mais provável que acabe se adaptando a novas realidades, como uma Guerra às Drogas, por exemplo.
"Agente" é a gíria mais usada por aqui para falar dessas pessoas curiosas demais, geralmente mais velhas, que observam você por trás das cortinas de suas janelas,

- Olha ali cara.. parece que tem um agente no terceiro andar.
- Qual deles? Ah sim.. então, vamos acender um cigarro. Aja naturalmente.

Assim que a erva fez efeito, as cores ficaram mais brilhosas que o comum, os sons da cidade e dos insetos ficaram mais destacados, e as batidas do coração mudam de ritmo. No chão já seco logo abaixo do banco do jardim, algumas lesmas e caracóis vagueiam, em seus delírios de câmera lenta, deixando trilhas brilhosas na grama e nas rachaduras do concreto.
"Olha isso", eu disse, e coloquei a ponta do cigarro bem em frente a um caracol. Após um bom tempo de observação - algo típico de um maconheiro -, o caracol havia chegado até o cigarro e, ao invés de simplesmente dar a volta por ele, parou bem na frente. Quinze minutos depois, três caracóis e uma lesma já haviam se juntado à festa. Como estátuas, ficaram ali, parados em frente à bagana. "Eles estão ficando chapados", meu amigo falou. "Sim", eu respondi.

- Será que é perigoso para eles? Assim, venenoso ou algo do tipo?
- Bem.. sem dúvida é tóxico para nós. Então não vejo porque não seria para eles.
- Será que eles podem morrer depois da exposição ao cigarro?
- Não faço idéia.. mas eles provavelmente vão morrer, ou podem ficar doentes, ou coisa do tipo.
- Isso não lhe incomoda?

Essa pergunta me fez repensar éticas, memórias e pensamentos - tarefa que pode exigir considerável esforço às vezes, quando se está chapado. Acabei respondendo algo do tipo: "Meu posicionamento é o seguinte, que caracóis são criaturinhas patéticas. No pouco tempo em que vivem, elas ficam tentando sobreviver e procriar. Elas estão aí, sendo esmagadas por pés, infectadas por bactérias, amassadas por carros. Até onde eu saiba, elas sequer possuem consciência, mas são como pequenos robôs que sentem dor, prazer e talvez algumas vezes, confusão, e que tentam desesperadamente fazer aquilo que foram programadas para fazer - procriar - antes que algo aconteça. Neste exato momento, enquanto elas ficam intoxicadas ou chapadas, como nós estamos dizendo, elas estão fora do programa que controla suas vidas, pelo menos por um pouquinho. Isso é a coisa mais próxima da liberdade, de alguma coisa como "individualidade", que elas poderiam um dia alcançar. Talvez todas morram em menos de meia hora. Não vou me sentir um assassino. Na verdade eu acho que até desejaria, se algum dia eu fosse um caracol ou uma lesma, que alguém viesse me oferecer um cigarro".

B

Há um pouco de arrogância, e uma bravata desnecessária, naquele argumento, mas de qualquer maneira eu ainda mantenho aquela atitude, que me fez dizer isto. De fato, eu a mantenho com mais convicção e argumentos mais desenvolvidos do que eu tinha naquela época. Considere eu. Onde eu estou neste jogo de destinos? Há uma eternidade antes do meu nascimento, há uma eternidade após minha morte. Planetas lentamente flutam no espaço, virando seus diferentes lados para os sóis em torno dos quais eles giram, os próprios sóis seguem seus padrões de movimento por milhões de anos, no nosso planeta montanhas mudam, continentes colidem e se reagrupam, oceanos evaporam, milhares de espécies de animais, pássaros, insetos, aparecem, se desenvolvem por milhares ou milhões de anos, e depois desaparecem. Quem sou eu? Minha vida é uma pequena faísca que está lá por um segundo, mesmo mil vezes menos que um segundo, depois desaparece. Puf! e eu me fui. No meu entendimento, durante esta minha vida eu posso fazer o seguinte:

a) seguir meus programas biológicos - os instintos das espécies a que pertenço - os "reflexos herdados", e meus "reflexos adquiridos" - hábitos simples que eu automaticamente aprendo do ambiente. Isto não me faria diferente de uma hiena ou de um mosquito.

b) eu posso também ser um humano, ultrapassar partes dos meus instintos e seguir programação social, que tem moldado minha psiquê desde meu nascimento, gerada por meus pais, minha educação e a sociedade como tal. Tal programação social molda o pensamento, as emoções e os hábitos do indivíduo humano do nascimento à morte, diferentemente, em diferentes sociedades e idade: de tal forma que eu faço, penso e vejo o que outras pessoas me dizem para fazer, pensar e ver.

Isto me faria um boneco biomecânico, que sente dor, prazer e talvez, às vezes, confusão, mas é diferente de um animal pois segue não instintos - a programação da natureza, e sim reflexos sociais - a programação da sociedade.

c) A terceira opção é manter as tentativas de rompimento - me desprogramar, me estudar e ver partes de mim que são de "fora", que são de "dentro", e talvez algum dia alcançar a transição de ser um típico representante de minha civilização - um triste e doente macaco com problemas emocionais e desilusões - a ser uma "pessoa" "autêntica", "real". Não apenas reconhecendo quão loucos todos são, e quão louco eu sou, não apenas tentando descobrir uma maneira de combater toda esta loucura, mas também tentando experimentar a vida em si, sem intermediários, experimentar a vida como tal, e não a versão distorcida, rasgada que foi jogada em minha cara, para ser seguida sob a ameaça de violência, prisão ou segregação mental.

É claro que este caminho do uso das drogas é perigoso - mesmo ignorando que aquela cadeia ou hospício estão a um fio de cabelo de distância - um erro durante a prática em si pode levar a doença ou morte.

Mas todos nós morremos. E ninguém está qualificado para escolher, por mim, quando e como eu morro. Na maioria, e talvez em todas as constituições das nações mundiais, o cidadão tem "um direito de viver". Mas nossas vidas não são eternas. Elas são eternas em um sentido religioso, mas nas leis existentes não há a vida eterna que é protegida, e sim a finita vida biológica de nossos cidadãos. E como humanos não são imortais - nós somos mortais - todos nós morremos, o "direito à vida" não significa o direito de não morrer - isto é impossível. Significa o direito de não ser assassinado. Significando o direito de não ter outra pessoa decidindo por você quando e como você morre.

Meu nascimento não foi minha escolha mas minha morte certamente pode e deve ser. Desde que eu não machuque ninguém diretamente - e eu certamente não mato, roubo ou estupro - então eu deveria ser deixado comigo em paz. Eu inteiramente concordo com a visão de que se todos fossem cabeças-duras como eu, a sociedade iria entrar em colapso. Se todos fossem geólogos abstêmios ou policiais alcólatras em escritórios e tivessem como hobby a observação de pássaros, a sociedade certamente também iria entrar em colapso. É precisamente a interação de pessoas radicalmente diferentes que faz única a nossa civilização e ao mesmo tempo a renova, permitindo que ela se cicatrize e não fique estagnada.

C

Pessoas que usam drogas ilegais, "viciados em drogas", oficialmente são criminosos do pior tipo, que devem ou serem presos para que "cidadãos de bem" não sejam infectados por sua loucura, ou sofrerem uma lavagem cerebral por psiquiatras normalizadores, que em décadas anteriores curaram carinhosamente em várias partes do globo, com suas pílulas, choques elétricos e seringas; crianças e adolescentes da masturbação; dissidentes de anti-comunismo; mulheres por sua "hiper-sexualidade"; homossexuais de sua homossexualidade. Normalizadores. Quando um dos bonecos bio-mecânicos começa a agir de forma estranha, ou a se comunicar com sinais esquisitos, ele tem de ser jogado fora ou "consertado".

- "Outro com o cérebro quebrado, doutor."
- "Ah então é isso? Vamos dar uma olhada...Hmm sim, ah, sim isso...Enfermeira! Meio metro de fiação, um conjunto de circuito B de percepção de profundidade de classe e um inibidor sexual tipo 3."

Nesse livro eu tento principalmente apresentar e analisar os vários argumentos que apóiam a necessidade do meu emprisionamento e lavagem cerebral, enquanto ao mesmo tempo apresento meus argumentos sobre como não devo ser preso ou sofrer uma lavagem cerebral. Há também alguns pensamentos posteriores e comentários adicionais. E uma observação final: mesmo se a pessoa X não usa drogas para nada 'útil', e só vaga por aí chapado, mesmo assim isso não deveria fazer dessa pessoa uma criminosa. A pessoa mais inútil do mundo não é criminosa até que mate, roube ou estupre. Qualquer outra coisa é um julgamento moral de um estilo de vida pessoal, que não deveria ter lugar nas leis de um país que se descreve como 'imparciais', 'democráticos' e 'livres'.


Aqui o link para o livro completo em inglês para quem quiser ler mais:
http://pt.scribd.com/doc/49839/My-Choice-to-Abuse-Drugs

sábado, 11 de agosto de 2012

Guerra aos Pecados, por Sam Harris


Nos Estados Unidos da América, e em grande parte do mundo, é atualmente ilegal buscar algumas experiências de prazer. Procure um prazer por um meio proibido, mesmo na privacidade de sua própria casa, e homens com armas podem chutar a sua porta e te levar embora para a cadeia. E uma das coisas mais surpreendentes sobre essa situação é como maioria de nós a acha pouco surpreendente. Como na maioria dos sonhos, a faculdade da razão que poderia nos ter feito notar a estranheza desses eventos parece ter sucumbido ao sono.

Comportamentos como uso de drogas, prostituição, sodomia, e a visão de materiais obscenos foram classificados como "crimes sem vítimas". Claro, a sociedade é a vítima tangível de tudo que os seres humanos fazem - desde fazer barulho a fabricação de resíduos químicos - mas não fizemos um crime destas ações, dentro de alguns limites. Definir limites em tese é sempre uma questão de avaliação de riscos. Alguém poderia argumentar que é no mínimo concebível que certas atividades praticadas em privado, como a visualização de pornografia sexualmente violenta, pode inclinar algumas pessoas a cometerem crimes reais contra outras pessoas.

Há uma tensão, portanto, entre a liberdade privada e risco público. Se houvesse uma droga, um livro, um filme, ou posição sexual que levasse 90 por cento de seus usuários a correr para as ruas e começar a matar pessoas de forma aleatória, as preocupações com prazer privado certamente iriam ceder diante daquelas da segurança pública. Podemos também estipular que ninguém está ansioso para ver gerações de crianças criadas em uma dieta constante de metanfetaminas e Marquês de Sade. A sociedade como um todo tem interesse em analisar como as suas crianças se desenvolvem, bem como com o comportamento privado dos pais, juntamente com o conteúdo de nossos meios de comunicação, claramente desempenham um papel nisso. Mas devemos nos perguntar, por que alguém iria querer punir pessoas por ter um comportamento que não traz nenhum risco significativo a outrem? Na verdade, o que é surpreendente sobre a noção de um crime sem vítimas é que mesmo quando o comportamento em questão é genuinamente sem vítimas, a sua criminalidade é reafirmada por aqueles que estão ansiosos para puni-la. Em tais casos é que a verdadeira motivação por trás de muitas das nossas leis é revelado. A idéia de um crime sem vítima é nada mais do que uma cobrança judicial do conceito Cristão de pecado.

Não é por acaso que freqüentemente as pessoas de fé querer cercear as liberdades privadas de terceiros. Esse impulso tem a ver menos com a história da religião e mais a ver com a sua lógica, porque a própria idéia de privacidade é incompatível com a existência de Deus. Se Deus vê e sabe todas as coisas, e se mantém uma criatura tão provinciana que fica escandalizada por comportamentos sexuais ou por alguns dos estados do cérebro/percepção, então o que as pessoas fazem na privacidade de suas próprias casas, embora possa não ter a mínima implicação em seu comportamento em público, ainda será uma questão de interesse público para as pessoas de fé.


Uma variedade de noções religiosas de delito pode estar convergindo aqui - preocupações sobre a sexualidade não-procriativa e especialmente idolatria - e parecem ter dado a muitos de nós a sensação de que é ético para punir as pessoas, muitas vezes severamente, por se engajar em comportamento privado que não prejudica ninguém. Como exemplos mais custosos de irracionalidade, em que a felicidade humana tem sido cegamente subvertida por gerações, o papel da religião aqui é tanto explícito e fundacional. Para ver que nossas leis contra "vícios" não tem nada a ver com evitar que as pessoas de sofram dano físico ou psicológico, e tudo a ver com não irritar a Deus, é preciso que só considerem que o sexo oral ou anal entre adultos com consentimento continua uma ofensa criminal em treze estados americanos. Quatro estados (Texas, Kansas, Oklahoma e Missouri) proíbem esses atos entre casais do mesmo sexo, portanto, efetivamente proíbem a homossexualidade. Outros nove estados proíbem a sodomia consensual para todos (lugares de equidade são Alabama, Flórida, Idaho, Louisiana, Mississippi, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Utah e Virginia). O indivíduo não precisa ser um demógrafo para compreender que o impulso para processar adultos responsáveis ​​por comportamento sexual não-procriativo está fortemente correlacionada justamente com a fé religiosa.


O impacto da fé em nossas leis penais tem um preço notável. Considere o caso das drogas. Como acontece, há muitas substâncias - muitas que ocorrem naturalmente - que seu consumo leva a estados transitórios de prazer desmedido. Ocasionalmente, é verdade, eles conduzem a estados transitórios de miséria. Porém não há dúvida de que o prazer é a norma, caso contrário os seres humanos não teriam sentido o desejo de consumir estas substâncias continuamente por milênios. Claro, o prazer é precisamente o problema com estas substâncias, já que o prazer e devoção sempre tiveram uma relação difícil.


Quando se olha para as nossas leis de drogas - na verdade, para todas nossas leis de vício - o único princípio-organizador que parece fazer sentido é que qualquer coisa que possa eclipsar radicalmente a oração ou a sexualidade para procriação como uma fonte de prazer foi feito ilegal. Em particular, qualquer droga, (LSD, mescalina, psilocibina, DMT, MDMA, maconha, etc.) que tenha significância espiritual ou religiosa atribuída pelos seus usuários se tornaram proibidas. Preocupações sobre a saúde dos cidadãos, ou sobre sua produtividade, são pistas falsas neste debate, como a legalidade de álcool e cigarros atesta.


O fato de que as pessoas estão sendo presas e processadas por uso de maconha, enquanto o álcool tem status de commoditie, é o reductio ad absurdum de qualquer noção de que nossas leis de drogas são projetadas para manter as pessoas de ferir a si ou aos outros. Álcool é por qualquer medida a substância mais perigosa. Não tem usos médicos aprovados, e sua dose letal é facilmente alcançada. Seu potencial para causar acidentes automobilísticos está fora de discussão. A maneira pela qual o álcool alivia as pessoas de suas inibições contribui para a violência humana, danos pessoais, gravidez não planejada, e a propagação de doenças sexuais. Álcool é bem conhecido por ser viciante. Quando consumido em grandes quantidades durante muitos anos, pode levar a seqüelas neurológicas devastadoras, a cirrose do fígado, e até a morte.

Nos Estados Unidos, mais de 100.000 pessoas morrem anualmente por seu consumo. Ele é mais tóxico para o feto em desenvolvimento do que qualquer outra droga de abuso. (Na verdade, "bebês do crack"  parecem ser vítimas na verdade da síndrome fetal do álcool). Nenhuma dessas acusações pode ser nivelada a maconha. Como uma droga, a maconha é quase única em ter várias aplicações médicas e dosagem letal desconhecida. Embora reações adversas a medicamentos como aspirina e ibuprofeno somam 7.600 mortes estimadas (76,000 e Internações) a cada ano nos Estados Unidos, a maconha não mata ninguém. Seu papel como uma "droga porta-de-entrada", agora parece menos plausível do que nunca (e nunca foi plausível). Na verdade, quase tudo que os seres humanos fazem - dirigir carros, pilotar aviões, acertar bolas de golfe - é mais perigoso do que fumar maconha na privacidade do próprio lar. Qualquer um que tente argumentar seriamente que a maconha é digna da proibição devido ao risco que representa para os seres humanos irá descobrir que os poderes do cérebro humano são simplesmente insuficientes para o trabalho.

E, no entanto, estamos tão longe dos bosques aprazíveis da razão agora que as pessoas continuam recebendo penas de prisão perpétua sem a possibilidade de condicional por cultivar, vender, possuir e comprar o que é, de fato, uma planta que ocorre naturalmente. Pacientes com câncer e paraplégicos foram condenados a décadas de prisão por posse de maconha. Proprietários de lojas de jardinagem já receberam prêmios semelhantes porque alguns de seus clientes foram pegos plantando maconha. O que explica este surpreendente desperdício de vida humana e recursos materiais? A única explicação é que o nosso discurso sobre este assunto nunca foi obrigado a funcionar dentro dos limites da racionalidade. De acordo com nossas leis atuais, é seguro dizer que, se uma droga fosse inventada, que não representasse nenhum risco de dano físico ou vício para os usuários, e produzisse um sentimento breve de felicidade e epifania espiritual em 100 por cento dos que tentassem utilizá-la, esta droga seria ilegal, e as pessoas seriam impiedosamente punidas por sua utilização. Apenas a ansiedade sobre o crime bíblico de idolatria parece fazer sentido diante desse impulso retributivo. Porque somos um povo de fé, ensinados a nos preocupar com o pecado dos nossos vizinhos, que temos crescido tolerantes com usos irracionais do poder estatal.


Nossa proibição de algumas substâncias tem levado milhares de homens e mulheres produtivos e cumpridores da lei a serem trancados por décadas a fio, às vezes por toda a vida. Suas crianças ficando sob custódia do estado. Como se tal horror em cascata não estivesse perturbando o suficiente, os criminosos violentos - homicidas, estupradores e molestadores de crianças - são frequentemente libertados em condicional para dar espaço para eles. Aqui nós parecemos ter ultrapassado a banalidade do mal e mergulhado na profundidade do absurdo.


As consequências da nossa irracionalidade nessa frente são tão flagrantes que nos cabe uma análise mais aprofundada. A cada ano, mais de 1,5 milhões de homens e mulheres são presos devido as leis drogas nos Estados Unidos. Neste momento, em algum lugar na ordem de 400.000 homens e mulheres definham nas prisões dos EUA por infrações de drogas não-violentas. Um milhão de outras pessoas estão atualmente em liberdade condicional. Mais pessoas estão encarceradas por delitos de drogas não violentos nos Estados Unidos que por qualquer motivo em toda a Europa Ocidental (que tem maior população). O custo desses esforços a nível federal, sozinho, é de aproximadamente 20 bilhões de dólares anualmente. O custo total de nossas leis de drogas - quando somamos as despesas dos Governos e a receita fiscal perdida pela nossa incapacidade de regular a venda de drogas - poderia ser facilmente mais de US$ 100 bilhões de dólares a cada ano. Nossa guerra contra ás drogas consome cerca de 50 por cento do tempo dos tribunais e as energias em tempo-integral de mais de 400.000 policiais. Esses recursos poderiam ser utilizados de outra forma, para combater a criminalidade violenta e o terrorismo.


Em termos históricos, havia todas as razões para se esperar que a política de proibição seria um fracasso. É sabido, por exemplo, que o experimento com a proibição do álcool nos Estados Unidos fez pouco mais que precipitar uma comédia terrível de aumento de taxas de consumo de álcool, crime organizado e corrupção policial. O que não é geralmente lembrado é que a proibição foi um exercício explicitamente religioso, sendo o produto do conjunto da Woman's Christian Temperance Union (União da Temperança Cristã das mulheres, tradução livre) e do lobby religioso de algumas sociedades protestantes missionárias. O problema com a proibição de qualquer produto desejável é o dinheiro. As Nações Unidas estimam o comércio de drogas em US$ 400 bilhões por ano. Isso excede o Orçamento Anual para o Departamento de Defesa dos EUA. Se esses números estiverem corretos, o comércio de drogas ilegais representam 8 por cento de todo o comércio internacional (enquanto a venda de têxteis representa 7,5 por cento e veículos a motor apenas 5,3 por cento). E vale notar que sua proibição é o que torna a fabricação e a venda dessas drogas tão extraordinariamente rentável. Aqueles que ganham a vida assim desfrutam de um retorno de 5.000% a 20.000% de seus investimentos, livre de impostos.

Todo indicador relevante do assunto do tráfico de drogas - as taxas de uso de drogas e proibição, estimativas de produção, a pureza de drogas na rua, etc. - mostram que o governo não pode fazer nada para detê-lo enquanto tais lucros existirem (na fato, esses lucros são altamente corrompíveis para os aplicadores da lei de qualquer forma). Os crimes do dependente, para financiar o custo estratosférico de seu estilo de vida e os crimes do traficante, para proteger seus bens e seu território, são também resultados da proibição. A ironia final, o que parece bom o suficiente para ser obra de Satanás em pessoa, é que o mercado criado por nossas leis de drogas tornou-se uma fonte estável de receitas para organizações terroristas como a Al Qaeda, a Jihad Islâmica, o Hezbollah, o Sendero Luminoso, entre outros.

Mesmo se reconhecemos que a interrupção do uso de drogas é um objetivo social justificável, como é que o custo financeiro de nossa guerra às drogas aparece à luz diante dos outros desafios que enfrentamos? Considere que seria necessário apenas uma única despesa de US$ 2 bilhões para garantir a segurança dos portos comerciais estadunidenses contra o contrabando de armas nucleares. Atualmente meros 93 milhões de dólares tem sido alocados para esta finalidade. Como a proibição do uso de maconha nos EUA soará (a um custo de US $ 4 bilhões por ano), se um novo sol despontar sobre o porto de Los Angeles?  Ou considere que governo dos EUA possui recursos para gastar apenas 2,3 bilhões dólares anuais para a reconstrução do Afeganistão. O Talibã e a Al Qaeda estão se reagrupando agora. Senhores da guerra dominam o campo além dos limites da cidade de Cabul. O que é mais significativo para nós, recuperar esta parte do mundo para a forças da civilização ou impedir que pacientes com câncer em Berkeley aliviem suas náuseas com maconha? Nosso uso de fundos do governo este ano sugere uma distorção estranha - poderíamos dizer mesmo uma falta de bom-senso - das nossas prioridades nacionais. Tal alocação bizarra de recursos seguramente manterá o Afeganistão em ruínas por muitos anos por vir. Também deixará os agricultores afegãos com nenhuma alternativa a não ser cultivar ópio. Felizmente para eles, devido as nossas leis de drogas, este continuará um empreendimento altamente rentável.


Qualquer um que acredita que Deus está nos observando além das estrelas vai sentir que punir homens e mulheres pacíficos pelo seu prazer particular é perfeitamente razoável. Estamos agora no século XXI. Talvez devemos ter melhores razões para privar os nossos vizinhos de liberdade sob a mira de uma arma. Dada a magnitude dos problemas reais que nos confrontam, como o terrorismo, proliferação nuclear, a propagação de doenças infecciosas, infra-estrutura falha, falta de fundos adequados para a educação e cuidados de saúde, etc. Nossa guerra contra o pecado é tão escandalosamente insensata e tola que desafia até o comentário racional. Como temos crescido tão cegos para os nossos interesses mais profundos? E como conseguimos aprovar essas políticas com tão pouco debate substantivo?


Passagem do livro "The End of Faith" de Sam Harris que é neurocientista, filósofo e ativista secular. 

Tradução: F.O.A.P.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Enfraquecida, Guiné-Bissau, nomeada pela ONU de Narco-Estado, cai para militares

 
      Guiné-Bissau tem uma longa história de derramamento de sangue, colônia e entreposto negreiro até o Século XIX, acabou por se tornar entreposto do narcotráfico sul-americano com destino a Europa no Séc. XXI, de território controlado pela coroa portuguesa até recentemente, conseguiu sua independência declarada em setembro de 1973 e que só teve reconhecimento em Portugal após a Revolução democrática dos Cravos em setembro 1974 no país português e que trouxe também uma democracia manca ao país africano.




    Mas no último dia 12 de abril de 2012 o regime parece ter tomado um passo para um regime muito menos democrático, e está sendo até visado por teocratas jihadistas da Irmandade Islâmica, em grande parte devido à influência do mercado ilegal das drogas no país e pelo fato do país estar mergulhado no conflito denunciado aqui mesmo neste blog e pelo nosso grupo de cultivadores de cannabis conscientes e desejosos de mudança na legislação, a perversa política de combate armado ao tráfico de drogas, a Guerra às drogas (termo cunhado por Richard Nixon em discurso proibicionista no ano de 1971) e que de fato contribuiu, e muito para a degradação do país como um todo devido o aumento no preço dessas drogas, e consequente aumento do poder e capital dos monopolistas do comércio de drogas, o crime organizado, traficantes de armas e drogas, assim como comprometimento do Estado com custo de segurança, construção de prisões, armamento policial, processamento penal de criminosos envolvidos no tráfico, etc.


    Por localização geográfica, o país serviu de hub para os navios negreiros, hoje é hub para o bilionário tráfico internacional de drogas.



     O pequeno país lusófono de mais ou menos um milhão e meio de habitantes é violento, já sofreu de inúmeros conflitos, um golpe de Estado, teve seu presidente João Bernardo Vieira assassinado em março de 2009; E finalmente, possui péssimos indicadores sociais (de 187 países listados no IDH, fica na 176ª posição), alfabetização de menos de 45% da população, expectativa de vida de 46 anos na média e que recentemente, segundo relatório da própria ONU, tinha se tornado o primeiro Narco-Estado do planeta, cujo valor da movimentação de drogas ilegais tinha ultrapassado os 18 bilhões de dólares, valor equivalente a, pasmem, mais de 15 vezes o valor do PIB nacional do país de 1,2 bi.


Traficantes preparam cápsulas de cocaína para 'mula' engolir. Foto da revista Time por MARCO VERNASCHI 



     Com os valores mencionados o crime organizado pode facilmente influenciar e mudar o destino da política de um país com Estado enfraquecido, na década de 80 Pablo Escobar, homem mais poderoso da Colômbia, enriqueceu com o mercado americano pagando em dólar, e comprou todos oficiais, militares de alto escalão que necessitou para transportar toneladas de cocaína para os EUA, e trazer os mesmos aviões cheios de toneladas de dinheiro dos EUA de volta para a Colômbia. Agora isso aconteceu na Guiné, e o golpe já era esperado por nativos e intelectuais.


Viciado em crack morador de Guiné-Bissau, país teve uma explosão em violência doméstica e consumo de drogas perigosas na última década.


 O acadêmico de Guiné-Bissau Fafali Kudawo por exemplo, disse em 2009 o seguinte sobre o tráfico: "O risco é que eles terão uma profunda penetração de dinheiro sujo na política, porque esse país é muito, muito frágil, e aquele que tem dinheiro pode fazer o que ele quiser. Você nunca sabe em nenhum momento o que irá mudar a situação ou levar o país à guerra ou à violência".


Protesto contra a violência na capital Bissau.


    Essa influência é sentida profundamente na sociedade, e o que Fafali temia parece ter se tornado realidade em pouco mais de três anos, o Narco-Estado foi tomado por militares, financiados e controlados por pessoas de origem desconhecida, e somente um louco poderia afirmar com certeza o que acontecerá em seguida no pequeno país, nos próximos dias podemos no máximo especular que sangue será derramado, mais pessoas serão mortas, e que um regime muito pior pode surgir dos escombros dessa acabada democracia, também podemos especular sobre quem estaria por trás de tal golpe de Estado e quem liderará o país no futuro, e só cenários mais obscuros tomariam nossas mentes, num país tão sectarizado, rachado culturalmente e pobre. São esses momentos que aproximam perigosamente o realismo do pessimismo. Situações onde 'direitos humanos' são somente palavras vazias, que devemos refletir nosso papel na sociedade atual. O papel de meros espectadores do espetáculo não é suficiente, pois se não nos virarmos à política, ela se virará para nós.



          Militares guineses após golpe, o país se encontrava em processo de eleição, e o candidato favorito não agradava generais.


      Nos resta o quê então? Continuar denunciando a Guerra às drogas por seu fracasso? A maneira como ela fomenta mortes fúteis e debocha da democracia?! Diante da retórica proibicionista insistente dos estadistas latinos presentes na Cúpula das Américas, apoiando a política de combate, diante do fato de que a América Latina é a região mais violenta do mundo, nos resta lutar por uma mudança nas brutais e irracionais leis que mergulham cada vez mais nosso continente num banho de sangue, o anti-proibicionista deve ser, como colocou brilhantemente Freud em "O futuro de uma Ilusão", como servos do deus Logos (do latim lógica ou razão), cuja voz, por apagada que seja, é insistente e não descansa enquanto não se faz ouvir, não se deixar abalar pela indiferença; A dormência atual precisa ser a motivação de amanhã para nos articularmos cada vez mais, e para no futuro conseguirmos nosso objetivo, que é a regulamentação justa e razoável das drogas hoje consideradas ilegais, e evitar o derramamento de sangue sem sentido que representa a Guerra às drogas; Custe o que custar.