sábado, 11 de agosto de 2012

Guerra aos Pecados, por Sam Harris


Nos Estados Unidos da América, e em grande parte do mundo, é atualmente ilegal buscar algumas experiências de prazer. Procure um prazer por um meio proibido, mesmo na privacidade de sua própria casa, e homens com armas podem chutar a sua porta e te levar embora para a cadeia. E uma das coisas mais surpreendentes sobre essa situação é como maioria de nós a acha pouco surpreendente. Como na maioria dos sonhos, a faculdade da razão que poderia nos ter feito notar a estranheza desses eventos parece ter sucumbido ao sono.

Comportamentos como uso de drogas, prostituição, sodomia, e a visão de materiais obscenos foram classificados como "crimes sem vítimas". Claro, a sociedade é a vítima tangível de tudo que os seres humanos fazem - desde fazer barulho a fabricação de resíduos químicos - mas não fizemos um crime destas ações, dentro de alguns limites. Definir limites em tese é sempre uma questão de avaliação de riscos. Alguém poderia argumentar que é no mínimo concebível que certas atividades praticadas em privado, como a visualização de pornografia sexualmente violenta, pode inclinar algumas pessoas a cometerem crimes reais contra outras pessoas.

Há uma tensão, portanto, entre a liberdade privada e risco público. Se houvesse uma droga, um livro, um filme, ou posição sexual que levasse 90 por cento de seus usuários a correr para as ruas e começar a matar pessoas de forma aleatória, as preocupações com prazer privado certamente iriam ceder diante daquelas da segurança pública. Podemos também estipular que ninguém está ansioso para ver gerações de crianças criadas em uma dieta constante de metanfetaminas e Marquês de Sade. A sociedade como um todo tem interesse em analisar como as suas crianças se desenvolvem, bem como com o comportamento privado dos pais, juntamente com o conteúdo de nossos meios de comunicação, claramente desempenham um papel nisso. Mas devemos nos perguntar, por que alguém iria querer punir pessoas por ter um comportamento que não traz nenhum risco significativo a outrem? Na verdade, o que é surpreendente sobre a noção de um crime sem vítimas é que mesmo quando o comportamento em questão é genuinamente sem vítimas, a sua criminalidade é reafirmada por aqueles que estão ansiosos para puni-la. Em tais casos é que a verdadeira motivação por trás de muitas das nossas leis é revelado. A idéia de um crime sem vítima é nada mais do que uma cobrança judicial do conceito Cristão de pecado.

Não é por acaso que freqüentemente as pessoas de fé querer cercear as liberdades privadas de terceiros. Esse impulso tem a ver menos com a história da religião e mais a ver com a sua lógica, porque a própria idéia de privacidade é incompatível com a existência de Deus. Se Deus vê e sabe todas as coisas, e se mantém uma criatura tão provinciana que fica escandalizada por comportamentos sexuais ou por alguns dos estados do cérebro/percepção, então o que as pessoas fazem na privacidade de suas próprias casas, embora possa não ter a mínima implicação em seu comportamento em público, ainda será uma questão de interesse público para as pessoas de fé.


Uma variedade de noções religiosas de delito pode estar convergindo aqui - preocupações sobre a sexualidade não-procriativa e especialmente idolatria - e parecem ter dado a muitos de nós a sensação de que é ético para punir as pessoas, muitas vezes severamente, por se engajar em comportamento privado que não prejudica ninguém. Como exemplos mais custosos de irracionalidade, em que a felicidade humana tem sido cegamente subvertida por gerações, o papel da religião aqui é tanto explícito e fundacional. Para ver que nossas leis contra "vícios" não tem nada a ver com evitar que as pessoas de sofram dano físico ou psicológico, e tudo a ver com não irritar a Deus, é preciso que só considerem que o sexo oral ou anal entre adultos com consentimento continua uma ofensa criminal em treze estados americanos. Quatro estados (Texas, Kansas, Oklahoma e Missouri) proíbem esses atos entre casais do mesmo sexo, portanto, efetivamente proíbem a homossexualidade. Outros nove estados proíbem a sodomia consensual para todos (lugares de equidade são Alabama, Flórida, Idaho, Louisiana, Mississippi, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Utah e Virginia). O indivíduo não precisa ser um demógrafo para compreender que o impulso para processar adultos responsáveis ​​por comportamento sexual não-procriativo está fortemente correlacionada justamente com a fé religiosa.


O impacto da fé em nossas leis penais tem um preço notável. Considere o caso das drogas. Como acontece, há muitas substâncias - muitas que ocorrem naturalmente - que seu consumo leva a estados transitórios de prazer desmedido. Ocasionalmente, é verdade, eles conduzem a estados transitórios de miséria. Porém não há dúvida de que o prazer é a norma, caso contrário os seres humanos não teriam sentido o desejo de consumir estas substâncias continuamente por milênios. Claro, o prazer é precisamente o problema com estas substâncias, já que o prazer e devoção sempre tiveram uma relação difícil.


Quando se olha para as nossas leis de drogas - na verdade, para todas nossas leis de vício - o único princípio-organizador que parece fazer sentido é que qualquer coisa que possa eclipsar radicalmente a oração ou a sexualidade para procriação como uma fonte de prazer foi feito ilegal. Em particular, qualquer droga, (LSD, mescalina, psilocibina, DMT, MDMA, maconha, etc.) que tenha significância espiritual ou religiosa atribuída pelos seus usuários se tornaram proibidas. Preocupações sobre a saúde dos cidadãos, ou sobre sua produtividade, são pistas falsas neste debate, como a legalidade de álcool e cigarros atesta.


O fato de que as pessoas estão sendo presas e processadas por uso de maconha, enquanto o álcool tem status de commoditie, é o reductio ad absurdum de qualquer noção de que nossas leis de drogas são projetadas para manter as pessoas de ferir a si ou aos outros. Álcool é por qualquer medida a substância mais perigosa. Não tem usos médicos aprovados, e sua dose letal é facilmente alcançada. Seu potencial para causar acidentes automobilísticos está fora de discussão. A maneira pela qual o álcool alivia as pessoas de suas inibições contribui para a violência humana, danos pessoais, gravidez não planejada, e a propagação de doenças sexuais. Álcool é bem conhecido por ser viciante. Quando consumido em grandes quantidades durante muitos anos, pode levar a seqüelas neurológicas devastadoras, a cirrose do fígado, e até a morte.

Nos Estados Unidos, mais de 100.000 pessoas morrem anualmente por seu consumo. Ele é mais tóxico para o feto em desenvolvimento do que qualquer outra droga de abuso. (Na verdade, "bebês do crack"  parecem ser vítimas na verdade da síndrome fetal do álcool). Nenhuma dessas acusações pode ser nivelada a maconha. Como uma droga, a maconha é quase única em ter várias aplicações médicas e dosagem letal desconhecida. Embora reações adversas a medicamentos como aspirina e ibuprofeno somam 7.600 mortes estimadas (76,000 e Internações) a cada ano nos Estados Unidos, a maconha não mata ninguém. Seu papel como uma "droga porta-de-entrada", agora parece menos plausível do que nunca (e nunca foi plausível). Na verdade, quase tudo que os seres humanos fazem - dirigir carros, pilotar aviões, acertar bolas de golfe - é mais perigoso do que fumar maconha na privacidade do próprio lar. Qualquer um que tente argumentar seriamente que a maconha é digna da proibição devido ao risco que representa para os seres humanos irá descobrir que os poderes do cérebro humano são simplesmente insuficientes para o trabalho.

E, no entanto, estamos tão longe dos bosques aprazíveis da razão agora que as pessoas continuam recebendo penas de prisão perpétua sem a possibilidade de condicional por cultivar, vender, possuir e comprar o que é, de fato, uma planta que ocorre naturalmente. Pacientes com câncer e paraplégicos foram condenados a décadas de prisão por posse de maconha. Proprietários de lojas de jardinagem já receberam prêmios semelhantes porque alguns de seus clientes foram pegos plantando maconha. O que explica este surpreendente desperdício de vida humana e recursos materiais? A única explicação é que o nosso discurso sobre este assunto nunca foi obrigado a funcionar dentro dos limites da racionalidade. De acordo com nossas leis atuais, é seguro dizer que, se uma droga fosse inventada, que não representasse nenhum risco de dano físico ou vício para os usuários, e produzisse um sentimento breve de felicidade e epifania espiritual em 100 por cento dos que tentassem utilizá-la, esta droga seria ilegal, e as pessoas seriam impiedosamente punidas por sua utilização. Apenas a ansiedade sobre o crime bíblico de idolatria parece fazer sentido diante desse impulso retributivo. Porque somos um povo de fé, ensinados a nos preocupar com o pecado dos nossos vizinhos, que temos crescido tolerantes com usos irracionais do poder estatal.


Nossa proibição de algumas substâncias tem levado milhares de homens e mulheres produtivos e cumpridores da lei a serem trancados por décadas a fio, às vezes por toda a vida. Suas crianças ficando sob custódia do estado. Como se tal horror em cascata não estivesse perturbando o suficiente, os criminosos violentos - homicidas, estupradores e molestadores de crianças - são frequentemente libertados em condicional para dar espaço para eles. Aqui nós parecemos ter ultrapassado a banalidade do mal e mergulhado na profundidade do absurdo.


As consequências da nossa irracionalidade nessa frente são tão flagrantes que nos cabe uma análise mais aprofundada. A cada ano, mais de 1,5 milhões de homens e mulheres são presos devido as leis drogas nos Estados Unidos. Neste momento, em algum lugar na ordem de 400.000 homens e mulheres definham nas prisões dos EUA por infrações de drogas não-violentas. Um milhão de outras pessoas estão atualmente em liberdade condicional. Mais pessoas estão encarceradas por delitos de drogas não violentos nos Estados Unidos que por qualquer motivo em toda a Europa Ocidental (que tem maior população). O custo desses esforços a nível federal, sozinho, é de aproximadamente 20 bilhões de dólares anualmente. O custo total de nossas leis de drogas - quando somamos as despesas dos Governos e a receita fiscal perdida pela nossa incapacidade de regular a venda de drogas - poderia ser facilmente mais de US$ 100 bilhões de dólares a cada ano. Nossa guerra contra ás drogas consome cerca de 50 por cento do tempo dos tribunais e as energias em tempo-integral de mais de 400.000 policiais. Esses recursos poderiam ser utilizados de outra forma, para combater a criminalidade violenta e o terrorismo.


Em termos históricos, havia todas as razões para se esperar que a política de proibição seria um fracasso. É sabido, por exemplo, que o experimento com a proibição do álcool nos Estados Unidos fez pouco mais que precipitar uma comédia terrível de aumento de taxas de consumo de álcool, crime organizado e corrupção policial. O que não é geralmente lembrado é que a proibição foi um exercício explicitamente religioso, sendo o produto do conjunto da Woman's Christian Temperance Union (União da Temperança Cristã das mulheres, tradução livre) e do lobby religioso de algumas sociedades protestantes missionárias. O problema com a proibição de qualquer produto desejável é o dinheiro. As Nações Unidas estimam o comércio de drogas em US$ 400 bilhões por ano. Isso excede o Orçamento Anual para o Departamento de Defesa dos EUA. Se esses números estiverem corretos, o comércio de drogas ilegais representam 8 por cento de todo o comércio internacional (enquanto a venda de têxteis representa 7,5 por cento e veículos a motor apenas 5,3 por cento). E vale notar que sua proibição é o que torna a fabricação e a venda dessas drogas tão extraordinariamente rentável. Aqueles que ganham a vida assim desfrutam de um retorno de 5.000% a 20.000% de seus investimentos, livre de impostos.

Todo indicador relevante do assunto do tráfico de drogas - as taxas de uso de drogas e proibição, estimativas de produção, a pureza de drogas na rua, etc. - mostram que o governo não pode fazer nada para detê-lo enquanto tais lucros existirem (na fato, esses lucros são altamente corrompíveis para os aplicadores da lei de qualquer forma). Os crimes do dependente, para financiar o custo estratosférico de seu estilo de vida e os crimes do traficante, para proteger seus bens e seu território, são também resultados da proibição. A ironia final, o que parece bom o suficiente para ser obra de Satanás em pessoa, é que o mercado criado por nossas leis de drogas tornou-se uma fonte estável de receitas para organizações terroristas como a Al Qaeda, a Jihad Islâmica, o Hezbollah, o Sendero Luminoso, entre outros.

Mesmo se reconhecemos que a interrupção do uso de drogas é um objetivo social justificável, como é que o custo financeiro de nossa guerra às drogas aparece à luz diante dos outros desafios que enfrentamos? Considere que seria necessário apenas uma única despesa de US$ 2 bilhões para garantir a segurança dos portos comerciais estadunidenses contra o contrabando de armas nucleares. Atualmente meros 93 milhões de dólares tem sido alocados para esta finalidade. Como a proibição do uso de maconha nos EUA soará (a um custo de US $ 4 bilhões por ano), se um novo sol despontar sobre o porto de Los Angeles?  Ou considere que governo dos EUA possui recursos para gastar apenas 2,3 bilhões dólares anuais para a reconstrução do Afeganistão. O Talibã e a Al Qaeda estão se reagrupando agora. Senhores da guerra dominam o campo além dos limites da cidade de Cabul. O que é mais significativo para nós, recuperar esta parte do mundo para a forças da civilização ou impedir que pacientes com câncer em Berkeley aliviem suas náuseas com maconha? Nosso uso de fundos do governo este ano sugere uma distorção estranha - poderíamos dizer mesmo uma falta de bom-senso - das nossas prioridades nacionais. Tal alocação bizarra de recursos seguramente manterá o Afeganistão em ruínas por muitos anos por vir. Também deixará os agricultores afegãos com nenhuma alternativa a não ser cultivar ópio. Felizmente para eles, devido as nossas leis de drogas, este continuará um empreendimento altamente rentável.


Qualquer um que acredita que Deus está nos observando além das estrelas vai sentir que punir homens e mulheres pacíficos pelo seu prazer particular é perfeitamente razoável. Estamos agora no século XXI. Talvez devemos ter melhores razões para privar os nossos vizinhos de liberdade sob a mira de uma arma. Dada a magnitude dos problemas reais que nos confrontam, como o terrorismo, proliferação nuclear, a propagação de doenças infecciosas, infra-estrutura falha, falta de fundos adequados para a educação e cuidados de saúde, etc. Nossa guerra contra o pecado é tão escandalosamente insensata e tola que desafia até o comentário racional. Como temos crescido tão cegos para os nossos interesses mais profundos? E como conseguimos aprovar essas políticas com tão pouco debate substantivo?


Passagem do livro "The End of Faith" de Sam Harris que é neurocientista, filósofo e ativista secular. 

Tradução: F.O.A.P.